Enterrei hoje a minha mulher – porque lhe chamo minha mulher? Enterrei-a eu próprio no fundo do quintal, debaixo da velha figueira. Levá-la para o cemitério, e como? Fica longe. Ela pedira-mo uma vez, inesperadamente, acordando-me a meio da noite.
Queria que a enterrasse junto ao muro que dá para o caminho porque se vê daí a casa dela. Habituara-se a olhar para aquele sítio depois que ficou só.
E pensava: «verei dali a janela do meu quarto».
Mas teria de transportá-la para lá. Não tenho forças e cai neve. A quantos estamos? É Inverno, Dezembro, talvez, ou Janeiro. Tiro a neve com uma pá, traço o rectângulo e cavo. Dois cães assomam à porta do quintal, chupados de ódio e de fome. Ainda há cães pela aldeia? Babam-se e uivam sinistramente. Tomo uma pedra, disparo-a contra um, desaparecem ambos a ganir. E de novo o silêncio cresce a toda a volta, desde a montanha que fico a olhar até me doerem os olhos. Olho-a sempre, interrogo-a.
Quando estou cansado de cavar, enxugo o suor e olho-a ainda. Um diálogo ficou suspenso entre nós ambos, desde quando? – desde a infância talvez, ou talvez desde mais longe. Um diálogo interrompido com tudo o que aconteceu e que é necessário liquidar, saldar de uma vez. Estou só, horrorosamente só, ó Deus e como sofro. Toda a solidão do mundo entrou dentro de mim. E no entanto, este orgulho triste, inchando – sou o Homem! Do desastre universal, ergo-me enorme e tremendo. Eu. Dois picos solitários levantam-se-me adiante, lá longe, trémulos no silêncio. Entre eles e a aldeia há um vazio escavado na montanha, donde sobem as sombras e a neblina. Pela manhã a neve infiltra-se pelos desfiladeiros, e toda a serra e a aldeia flutuam. Então é como se o tempo se esvaziasse e a vida surgisse fora da vida. Mas agora o ar é puro, transparente, como um sino na manhã. Só as sombras se erguem desde o fundo. Com a neve acumulada tomam um tom violáceo. Mas é um tom nítido como no espectro solar. Os dois picos, de arestas limpas, vibram imperceptivelmente no céu húmido e já escuro.
Trago o corpo da minha mulher embrulhado num lençol. É estranho como pesa. Dir-se-ia que a terra o exige com violência. Gostaria de a olhar pela última vez, e no entanto não é fácil. O lençol é branco e confunde-se com a neve. Assim é como se o corpo se confundisse também. A toda a borda da cova, a neve ficou suja da terra acumulada. Será a fundura bastante? Metro e meio, talvez. De comprimento está bem. Encosto-me ao cabo da enxada e é estranho que não reconheça em mim um sentimento distinto.
Cansaço, decerto. E o orgulho. E o medo. Será tudo o mesmo? E a resignação, talvez, ou mesmo a plenitude. Estás velho, como o não sabes? estás velho.
Talvez seja assim a velhice: um esgotamento longo de tudo. E no centro, breve, uma verdade final. Como um objecto precioso que se tira da terra e se limpa – qual a tua verdade final? Mas estou tão cansado. Agora não. Olho a aldeia abandonada, perdida na montanha, ouço o silêncio. E sinto-me aí disperso, irisado em espaço, íntegro e puro. E nu.
Mas quando vou a erguer o corpo, não resisto: subtilmente afasto as dobras do lençol. Então Águeda aparece-me à última luz da tarde de Inverno. Magra, sisuda, indignada com a vida. Pus-lhe o terço nas mãos, um pouco talvez para a reconciliar consigo, para ter um sono mais fácil. Mas a face agreste de boca cerzida, as mãos quase enclavinhadas fixaram para sempre a imagem do seu desespero.
Ferreira, Virgílio, in “Alegria Breve”, Lisboa, Portugália Editora, Maio de 1969.