Saturday, September 18, 2004

Os Comediantes



«A situação no Iraque "preocupa enormemente" o governo português mas não justifica um apelo ao regresso dos civis portugueses no país, declarou o ministro dos Negócios Estrangeiros português, António Monteiro, em resposta a uma pergunta sobre se Portugal tenciona lançar um apelo semelhante ao que a Alemanha fez aos seus cidadãos no Iraque.»
Esta notícia divulgada ontem no site da Agência Lusa, já não causa, infelizmente perplexidade. As sucessivas provas de estupidez pura e simples por parte deste executivo, já não dão espaço a espanto. Mesmo quando os últimos dados apontam para uma centena de estrangeiros raptados nos últimos 7 meses em território iraquiano, 20 dos quais morreram, e duas dezenas continuam desaparecidos.
Mohammed Saeed al-Sahhaf, Ministro da Informação iraquiano à data do início da ofensiva militar que derrubaria Saddam Hussein, recebeu o cognome de Cómico Ali por se ter recusado até ao fim, a admitir a derrota do exército iraquiano. Que chamar então à administração norte-americana e aos seus apoiantes, que sempre insistiram na existência de armas de destruição maciça para legitimar uma guerra ilegítima? Que continuam a avançar com a data de Janeiro de 2005 para as primeiras eleições “livres” do pós-guerra, quando a guerra ainda não terminou e já outra se inicia. Que insistem em passar a mensagem de que tudo vai bem na velha Babilónia numa altura em que os números gritam uma outra realidade: cerca de 14 mil civis iraquianos e 1164 soldados da coligação mortos desde Março de 2003. E já agora o que dizer de Sua Excelência o Secretário-geral das Nações Unidas, que só agora descobriu que esta guerra é ilegítima? Talvez um calduço e um elucidativo “Troll” não fosse desapropriado de todo.


Friday, September 17, 2004

Manucure



Na sensação de estar polindo as minhas unhas,
Súbita sensação inexplicável de ternura,
Tudo me incluo em Mim - piedosamente.
Entanto eis-me sozinho no Café:
De manhã, como sempre, em bocejos amarelos.
De volta, as mesas apenas - ingratas
E duras, esquinadas na sua desgraciosidade
Bocal, quadrangular e livre-pensadora...
Fora: dia de Maio em luz
E sol - dia brutal, provinciano e democrático
Que os meus olhos delicados, refinados, esguios e citadinos
Nem podem tolerar - e apenas forcados
Suportam em náuseas. Toda a minha sensibilidade
Se ofende com este dia que há-de ter cantores
Entre os amigos com quem ando às vezes -
Trigueiros, naturais, de bigodes fartos -
Que escrevem, mas têm partido político
E assistem a congressos republicanos,
Vão às mulheres, gostam de vinho tinto,
De peros ou de sardinhas fritas...
E eu sempre na sensação de polir as minhas unhas
E de as pintar com um verniz parisiense,
Vou-me mais e mais enternecendo
Até chorar por Mim...
Mil cores no Ar, mil vibrações latejantes,
Brumosos planos desviados
Abatendo flechas, listas volúveis, discos flexíveis,
Chegam tenuamente a perfilar-me
Toda a ternura que eu pudera ter vivido,
Toda a grandeza que eu pudera ter sentido,
Todos os cenários que entretanto Fui...
Eis como, pouco a pouco, se me foca
A obsessão débil dum sorriso
Que espelhos vagos reflectiram...
Leve inflexão a sinusar...
Fino arrepio cristalizado...
Inatingível deslocamento...
Veloz faúlha atmosférica...

E tudo, tudo assim me é conduzido no espaço
Por inúmeras intersecções de planos
Múltiplos, livres, resvalantes.

É lá, no grande Espelho de fantasmas
Que ondula e se entregolfa todo o meu passado,
Se desmorona o meu presente,
E o meu futuro é já poeira...

..........................................................................

Deponho então as minhas limas,
As minhas tesouras, os meus godets de verniz,
Os polidores da minha sensação -
E solto meus olhos a enlouquecerem de Ar!
Oh! poder exaurir tudo quanto nele se incrusta,
Varar a sua Beleza - sem suporte, enfim! -
Cantar o que ele revolve, e amolda, impregna,
Alastra e expande em vibrações:
Subtilizado, sucessivo - perpétuo ao Infinito!...

Que calotes suspensas entre ogivas de ruínas,
Que triângulos sólidos pelas naves partidos!
Que hélices atrás dum voo vertical!
Que esferas graciosas sucedendo a uma bola de ténis! -
Que loiras oscilações se ri a boca da jogadora...
Que grinaldas vermelhas, que leques, se a dançarina russa,
Meia nua, agita as mãos pintadas da Salomé
Num grande palco a Oiro!
- Que rendas outros bailados!

Ah! mas que inflexões de precipício, estridentes, cegantes,
Que vértices brutais a divergir, a ranger,
Se facas de apache se entrecruzam
Altas madrugadas frias...

E pelas estações e cais de embarque,
Os grandes caixotes acumulados,
As malas, os fardos - pêle-mêle...
Tudo inserto em Ar,
Afeiçoado por ele, separado por ele
Em múltiplos interstícios
Por onde eu sinto a minh'Alma a divagar!...

- Ó beleza futurista das mercadorias!

- Sarapilheira dos fardos,
Como eu quisera togar-me de Ti!
- Madeira dos caixotes,
Como eu ansiara cravar os dentes em Ti!
E os pregos, as cordas, os aros... -
Mas, acima de tudo,
Como bailam faiscantes,
A meus olhos audazes de beleza,
As inscrições de todos esses fardos -
Negras, vermelhas, azuis ou verdes -
Gritos de actual e Comércio & Indústria
Em trânsito cosmopolita:


F R A G I L ! F R A G I L !



843 - AG LISBON



492 - WR MADRID


Ávido, em sucessão da nova Beleza atmosférica,
O meu olhar coleia sempre em frenesis de absorvê-la
À minha volta. E a que mágicas, e m verdade, tudo baldeado
Pelo grande fluido insidioso,
Se volve, de grotesco - célere,
Imponderável, esbelto, leviano...
- Olha as mesas... Eia! Eia!
Lá vão todas no Ar às cabriolas,
Em séries instantâneas de quadrados
Ali - mas já, mais longe, em losangos desviados...
E entregolfam-se as filas indestrinçavelmente,
E misturam-se às mesas as insinuações berrantes
Das bancadas de veludo vermelho
Que, ladeando-o, correm todo o Café...
E, mais alto, em planos oblíquos,
Simbolismos aéreos de heráldicas ténues
Deslumbra m os xadrezes dos fundos de palhinha
Das cadeiras que, estremunhadas em seu sono horizontal,
Vá lá, se erguem também na sarabanda...

Meus olhos ungidos de Novo,
Sim! - meus olhos futuristas, meus olhos cubistas, meus olhos interseccionistas,
Não param de fremir, de sorver e faiscar
Toda a beleza espectral, transferida, sucedânea,
Toda essa Beleza-sem-Suporte,
Desconjuntada, emersa, variável sempre
E livre - em mutações contínuas,
Em insondáveis divergências...

- Quanto à minha chávena banal de porcelana?

Ah, essa esgota-se em curvas gregas de ânfora,
Ascende num vértice de espiras
Que o seu rebordo frisado a oiro emite...

É no ar que ondeia tudo! É lá que tudo existe!...

...Dos longos vidros polidos que deitam sobre a rua,
Agora, chegam teorias de vértices hialinos
A latejar cristalizações nevoadas e difusas.
Como um raio de sol atravessa a vitrine maior,
Bailam no espaço a tingi-lo em fantasias,
Laços, grifos, setas, ases - na poeira multicolor -.

Lisboa, Maio de 1915 (publicado na revista Orpheu 2, 1915)

Thursday, September 16, 2004

Aeroporto

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Deve ser uma das cenas mais recorrentes do cinema: Ela vai-se embora lavada em lágrimas. Ele deixa-a partir. De súbito ele compreende que não pode viver sem ela. Sai de casa intempestivamente, apanha um táxi, corre pelo aeroporto, procura o terminal de partida, desce escadas, empurra, salta... mas é tarde de mais. O avião já rola na pista levando a sua amada para longe. Longe demais. De olhos pregados no chão ele ouve uma voz... ele volta-se, os seus olhares encontram-se, abraçam-se, trocam juras de eterno amor. O FIM.
Em Portugal onde o atraso dos aviões é epidémico esta cena seria impossível mesmo nos filmes. Especialmente se o avião fosse da YES.

Wednesday, September 08, 2004

Angels in DVD



A série Anjos na América, que se abateu sobre este céu como uma tempestade divina, já se encontra disponivel em DVD. quem o garante é o IMDB esse site fetiche de todos os cinéfilos em geral.

Sunday, September 05, 2004

Heart Shaped Box

Às vezes acontece-me isto: assalta-me a memória uma certa canção esquecida à muito. depois vasculho tudo até a encontrar, e ouço-a para de seguida a começar a esquecer outra vez.

She eyes me like a Pisces when I am weak
I've been locked inside your heart-shaped box for weeks
I've been drawn into your magnet tar pit trap
I wish I could eat your cancer when you turn back

Hey
Wait
I've got a new conplaint
Forever in debt to your priceless advice
Hate
Haight
I've got a new complaint
Forever in debt to your prieless advice
Hey
Wait
I've got a new complaint
Forever in debt to your priceless advice
Your advice

Meat-eating orchids forgive no one just yet
Cut myself angel's hair and baby's breath
Broken hymen of your highness I'm left black
Throw down your umbilical noose so I can climb right back

Hey
Wait
I've got a new conplaint
Forever in debt to your priceless advice
Hate
Haight
I've got a new complaint
Forever in debt to your prieless advice
Hey
Wait
I've got a new complaint
Forever in debt to your priceless advice
Your advice

She eyes me like a Pisces when I am weak
I've been locked inside your heart-shaped box for weeks
I've been drawn into your magnet tar pit trap
I wish I could eat your cancer when you turn back

Hey
Wait
I've got a new conplaint
Forever in debt to your priceless advice
Hate
Haight
I've got a new complaint
Forever in debt to your prieless advice
Hey
Wait
I've got a new complaint
Forever in debt to your priceless advice
Your advice
Your advice
Your advice

Nirvana

The Monster's Ball



Olho incrédulo as imagens das crianças que enchem as ruas de Beslan, o seu sangue gritando na alvidez das mortalhas que envolvem os seus corpos, sem vida. no turbilhão de sentimentos que se revolvem cá dentro, lembro-me da história de Hank e Leticia e interrogo-me: se o perdão é a única forma de interromper o ciclo que alimenta o ódio, até que ponto estará entranhado o ódio no coração de homens capazes de semelhantes atrocidades, desta e de outras: na Palestina, em Caxemira, no Iraque, no Sudão ou até, porque não, na Irlanda do Norte, no País Basco, em Nova Iorque. até que ponto será possivel perdoar quando tudo o que muda é a proporção da barbárie? quando já não é possivel distinguir os "bons" dos "maus" as crianças tornam-se o último reduto da inocência. talvez também por isso são sempre as primeiras a pagar pela insanidade dos adultos.

Thursday, September 02, 2004

Um filme Chamado Wanda



A Alice regressou ao País dos Matraquilhos e ainda bem. Isto porque se não há blogs insubstituíveis, há aqueles que deixam um sabor amargo a vazio no espaço superpovoado da Internet. Contudo não foi o seu regresso que me levou a escrever este texto mas sim um post em particular sobre o filme Wanda, de Barbara Loden, em reposição nos cinemas King. Termina a Ana dizendo que este filme só poderia ter sido escrito e realizado por uma mulher e que nenhum homem poderá compreendê-lo. Concordo perfeitamente com a primeira parte. Já a segunda levanta-me algumas reservas, até porque sou homem e alturas houve em que me senti um pouco como aquela mulher. Alturas de depressão e angústia, onde a simples ideia de me levantar da cama assumia contornos da pior das torturas, em que o meu único desejo era ser invisível, passear na vida sem tocar com os pés no chão, um espectro flutuando ao rumo dos acontecimentos. Sim a natureza dos homens e das mulheres é diferente, mas não tanto como sempre nos fizeram crer. Ensinam-nos desde crianças que existe uma barreira intransponível entre os dois sexos, que rapazes brincam com rapazes, raparigas com raparigas. Contacto com o outro sexo só mais tarde na adolescência, por motivos de natureza fisiológica e só por esse motivo. Qualquer tentativa de explicar que é “só amizade” esbarra invariavelmente num sorriso trocista e uma palmadinha cúmplice nas costas. Um rapaz que chora no cinema, que é capaz de dizer que o Jeremy Irons é bonito, que só se dá com raparigas, que gosta de Ballet, que lê poesia em voz alta e adora cozinhar só pode ser um desviante. Um homossexual em suma. Eu que gosto de tudo o que descrevi acima já há muito que me habituei a ser olhado como alguém “não muito normal”, ao que eu respondo: “as pessoas normais não têm nada de especial”, mesmo que não acredite muito nisso. No meu caso pelo menos.