Saturday, January 03, 2004

Aforismo Amoral (VI)*



«Um dia, quando ainda era jovem, Jorge Luís Borges desejou morrer. Queria morrer completamente. Tinha esperança que a vida eterna, o paraíso e o inferno, Deus e o Diabo, a reencarnação, tudo isso, fossem superstições urdidas ao longo de séculos e séculos, pelo vasto terror dos homens. Comprou um revólver numa armaria, apenas a dois passos da sua casa, mas onde nunca tinha entrado antes, e cujo proprietário não o conhecia. Depois comprou um livro policial e uma garrafa de genebra. Foi para um hotel na praia, bebeu a genebra com desgosto, em largos goles (sentia pelo álcool a mesma repugnância que pelo futebol), e estendeu-se na cama a ler um livro. Achava que a genebra, somada ao tédio de um enredo ingénuo, lhe daria a coragem necessária para encostar o revólver à nuca e apertar o gatilho. O livro, porém não era mau – e ele leu-o até ao fim. Quando chegou à última página começou a chover. Era como se chovesse noite. Explico melhor: era como se do céu caíssem grossos fragmentos desse oceano escuro e sonolento no qual navegam as estrelas. Jorge Luís Borges ficou à espera de as ver cair, quebrando-se depois, com grande brilho e clamor, de encontro às vidraças. Não caíram. Apagou o candeeiro. Encostou o revólver à nuca, e adormeceu. Morreu muito velho, em Genebra, muitos anos depois. A genebra, afinal, sempre o ajudou a morrer, mas não como ele havia suposto. Não há como o sono, às vezes, para afastar a morte

*José Eduardo Agualusa - Seis Aforismos Amorais (excerto). Publicado na revista «Pública» a 18/05/2003.

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